Não é o que você vê
Beleza é mais do que aparência. Personalidade e atitude também nos fazem parecer mais bonitos
Da boca para fora, Vinicius de Moraes não titubeava: "Beleza é fundamental". Ele próprio, no entanto, tinha barriguinha aparente, fumava até amarelar os dentes e conseguia ser ao mesmo tempo meio careca e descabelado. Nem por isso o poetinha sofreu com falta de pretendentes. Vinicius é um bom exemplo de como são duvidosos os juízos sobre a beleza. Melhor pensar direito antes de adotá-los como verdade absoluta. Ou antes de sair perseguindo as formas de uma garota de Ipanema.
É verdade que nunca a imagem foi tão privilegiada, mas isso não quer dizer que sejamos reféns dos padrões dominantes de beleza. Primeiro, é preciso entender como esses padrões são criados. Sim, criados. Os lábios e, ah, as curvas da Gisele Bündchen podem parecer universais, mas nossa admiração por sua figura magricela é um traço cultural. Em segundo lugar, beleza não é só aparência física. Pesquisas mostram que atitudes bacanas e traços positivos de personalidade, como bom humor, fazem com que as pessoas sejam percebidas como mais bonitas. Quem está ao seu redor passa a misturar as qualidades, borrando as fronteiras entre os atributos estéticos e os de personalidade. E isso não é conversa de auto-ajuda para os feiosos. Essa confusão de sentidos, que faz o risonho parecer bonito, tem nome científico: chama-se perda da objetividade.
O melhor de tudo é que essa beleza expandida, que inclui o número de bons-dias que você dá e outros quesitos, pode ser cultivada. E não estamos falando de cumprir pena na academia de ginástica. A idéia é: ressalte o melhor que você tem por dentro e fique melhor por fora. "Você não precisa ser lindo para ser bonito", afirma o cantor Wando, uma autoridade em matéria de beleza interior. Malhar a auto-estima, anabolizar a confiança e esculpir a autenticidade são tratamentos de beleza. Como costuma dizer a publicidade de cosméticos, "todos vão notar". Não há um jeito certo de ser bonito, nem um jeito errado. Cada um encontra sua beleza.
Falando assim, parece simples ser bonito. E é. Basta procurar os parâmetros do que é belo no lugar certo, ou seja, em você. Se deixar que os outros decidam isso, vai morrer esperando, porque a discussão sobre o que é beleza começou há séculos e não vai acabar nunca. Começa com os filósofos gregos, para quem a beleza estava ligada à virtude moral, o que, bem grosso modo, quer dizer o seguinte: se você é bonita, tem um narizinho arrebitado e aqueles olhos de que eu gosto tanto, provavelmente é também honesta, fiel e mais uma porção de boas coisas. A beleza estava no objeto. Só no século 18 foram perceber o óbvio: a beleza está nos olhos de quem vê. De fato, é fácil constatar isso: as madonas que pareciam lindas aos olhos dos pintores renascentistas são rechonchudas demais para os padrões anoréxicos da moda atual. Para quem não agüenta ver uma sueca ou um norueguês sem suspirar, saiba que os navegadores europeus assustavam muita gente. Para nativos da América, África e Ásia que nunca tinham visto europeus, eles pareciam fantasmas, com suas peles e cabelos claros.
Mas quem matou a charada foi o filósofo alemão Hegel, que disse, no século 19, que o prazer com o belo é um deleite narcísico. Em outras palavras: admiramos aquilo que é o reflexo de nós mesmos. "Em cada época, o que destoa do padrão vigente é considerado incômodo, estranho, feio", diz Charles Feitosa, doutor em filosofia que pesquisa a estética do feio e autor do livro Explicando a Filosofia com Arte. "Aprender a relativizar o conceito de beleza é aprender a lidar com o outro, com o diferente", diz.
Mas houve quem procurasse um padrão estético absoluto, que fosse considerado bonito entre ocidentais de hoje e da Idade Média, entre ianomâmis e habitantes da Polinésia, entre nigerianos e japoneses. Nesse ramo do conhecimento, a estética, a matemática e a biologia são freqüentemente chamadas para ajudar na discussão.
Os antigos gregos e os renascentistas acreditavam que o belo poderia ser definido por equilíbrios geométricos. Bastava combinar de forma harmoniosa partes de tamanho apropriado. Eles trabalhavam até com uma receita de beleza baseada no equilíbrio espacial, chamada de proporção áurea. Por essa regra, bonito era ter nariz e orelhas com comprimento igual, e foi assim que as pessoas foram retratadas pelos artistas da Renascença. Hoje, essas antigas teses parecem simplistas, mas na verdade elas só foram substituídas por outras, que seguem em vigor, agora dando lucros aos cirurgiões plásticos, em vez de artistas. Tudo isso faz parte do esforço da humanidade para colocar ordem na grande confusão que é a realidade. Quem dera pudéssemos entender a beleza usando fórmulas matemáticas.
A biologia parece ter mais fôlego na explicação dos ideais de beleza. Tudo começa com Charles Darwin, pai da teoria da evolução, que no século 19 percebeu que os animais selecionavam parceiros sexuais pela aparência. Entre os cervos, por exemplo, machos com chifres simétricos são os preferidos. A aparência aí está relacionada à capacidade de gerar filhotes sadios e com maiores chances de sucesso na luta pela vida. Para muitos especialistas, também entre os humanos a beleza seria interpretada como sinal de bons genes. Um exemplo? Mulheres com cintura estreita são bonitas tanto para os índios peruanos do século 16 como para as francesinhas do século 21. O psicólogo Aílton Amélio, do Centro de Estudos da Timidez e do Amor, da Universidade de São Paulo, diz que a relação ideal entre cintura e quadril é 0,67 a 0,80 - ou seja, o ideal de beleza universal prevê cintura que tenha no máximo 80% da medida do quadril. É uma questão estética, que tem por trás uma explicação biológica: cinturas mais grossas geralmente indicam disfunções hormonais e menos chances de gerar filhos. As banhistas de Renoir, consideradas modelo de beleza ao tempo em que foram pintadas, estão no intervalo entre 0,67 e 0,80, segundo Amélio. Quer outra pista da universalidade? Quando ocidentais são mostradas a homens polinésios, eles consideram os corpos delas feios, mas as menos feias são justamente as que têm cintura fina.
No caso dos homens, é universalmente valorizado o espécime que tem ombros mais largos que o quadril e maxilar forte, quadrado. Também há estudos mostrando que rostos que consideramos bonitos em ambos os sexos chamam mais a atenção de bebês - mais um indício de atributos universais de beleza, pois as crianças muito pequenas nem experimentaram as influências da cultura. Em geral, sinais que indicam juventude, fertilidade e afirmação do sexo são considerados belos pelos grupos mais variados.
A ditadura da belezaEntre os fatores que influenciam a percepção de beleza, é a cultura que parece ter papel predominante na tirania contemporânea da aparência. Há um consenso de que é exagerada a importância que se dá aos traços físicos das pessoas, sobretudo no Ocidente. "Estamos esquecendo os valores éticos e outros aspectos do ser humano", diz o filósofo Charles Feitosa. "Fala-se do aspecto físico como se estivesse em julgamento a qualidade da pessoa."
Algumas mudanças na economia e na sociedade ajudam a entender como chegamos até aqui. Vivemos na era pós-industrial, quer dizer, não é mais a indústria o centro da economia. Hoje, quem avança é o setor de serviços - o comércio, os bancos, o turismo, o lazer. Num mundo com menos operários de macacão e mais mocinhas atrás dos balcões, a aparência conta muito mais. Também o salto tecnológico nas comunicações cria um ambiente em que a imagem é tudo. Basta olhar os telefones celulares à sua volta, a cada dia com mais truques para transmitir imagens. Antes você descrevia a pessoa amada para um amigo, agora vai mostrar a foto dela no celular. É bem diferente, concorda? Também vivemos uma individualização crescente, com as pessoas cada vez mais isoladas e com menos trocas humanas. Passamos a ser julgados menos pelo que somos e mais pelo que, à distância, parecemos ser.
O resultado disso é que o padrão dominante de beleza, inventado por uma meia dúzia e divulgado por outra meia dúzia, contaminou todos os ambientes. Você liga a televisão e lá estão as bonitonas e os saradões no papel de vencedores. Você é bombardeado por peças publicitárias que associam comunhão familiar e beleza, dinheiro no bolso e beleza, ser amado e beleza, felicidade e beleza. O pior é quando isso sai da TV e alcança sua vida. Pesquisa publicada em 1994 pela revista americana American Economic Review mostrou que pessoas consideradas bonitas ganham salários em média 10% mais altos do que as feias. Você se pergunta então se belos traços físicos significam tratamento melhor no dia-a-dia e fica sabendo do teste da moeda feito por psicólogos norte-americanos. Ao encontrarem 10 centavos intencionalmente deixados numa cabine telefônica, 87% dos ocupantes devolveram a moeda quando apareceu uma mulher bonita perguntando por ela. Só 60% fizeram o mesmo por uma mulher tida como feia.
Mas chega de falar do problema. Já dissemos que há padrões aparentemente universais de beleza, que outros são criados pela cultura e que há hoje uma ditadura da imagem, que influencia, de fato, a vida de todos. Tudo isso nos empurra para que nos encaixemos nos padrões de beleza. Mas não estamos sem alternativas. Há várias.
Comece por não se deixar levar só pela aparência. Explicando melhor: contrariando a primeira impressão, os atributos unicamente estéticos não são o principal quesito usado pelas pessoas para avaliar as outras. Pesquisa em 37 países sobre o que homens e mulheres consideravam mais importante na hora de escolher o parceiro amoroso deu que, para os homens, a boa aparência é o décimo quesito, atrás de estabilidade emocional, inteligência e sociabilidade, por exemplo. Entre as mulheres, ficou em 13º, ultrapassada por elegância, ambição e boa perspectiva financeira.
Mesmo em carreiras em que o visual conta muito, a beleza está longe de ser o único critério de avaliação. "A maioria dos modelos e artistas sofre demais para se adequar a um padrão estabelecido", diz o modelo Paulo Zulu. "Mas o visual pode ser o cartão de entrada e também o cartão de saída. O que fica é o caráter." Para os repórteres e apresentadores de televisão, por exemplo, simpatia, naturalidade e, sobretudo, credibilidade são atributos até mais importantes do que um rosto bonito. "Há casos de gente que desponta usando apenas a aparência, mas esses acabam sendo sucessos passageiros", afirma Luciana Lancellotti, repórter da Rede Record - uma profissão que requer boa apresentação. "Não adianta nada ser maravilhoso e não criar uma relação de proximidade com o espectador." O cantor Wando diz que há espaço de sobra para artistas como ele. "Não sou lindo. Sou um tipo latino, que se bobear fica meio gordinho. Meu forte é a comunicação, e é isso que faz a beleza da gente ficar grande."
Wando toca num ponto fundamental: as atitudes e o astral são capazes de deixar você mais bonito. Tire proveito dessa miopia benigna que faz com que suas qualidades todas sejam percebidas pelos outros como beleza. É científico. Experiências demonstram que a avaliação da aparência varia com o contato interpessoal. A mesma pessoa dá notas diferentes para as características físicas de alguém antes e depois de conhecê-lo. Uma presença agradável afeta positivamente essa avaliação, "embelezando" uma pessoa antes avaliada apenas por foto. Está aí um convite para você explorar seu potencial. Abuse de seu bom humor, dê asas a sua simpatia, seja positivo e coloque seu lado bom lá para cima. Nada mais bonito do que alguém que está de bem com a vida, pouco importando a relação entre o tamanho de sua cintura e o de seu quadril. "De que vale uma bela aparência, se a pessoa não está bem com ela mesma?", diz a atriz Luciana Vendramini (aqui à direita, na foto da esquerda). Mais ainda: como é possível ter uma boa aparência sem estar de bem com a gente mesmo?
É preciso lembrar que todos temos defeitos, incompletudes, pontos fracos, mesmo o Brad Pitt. "Se você conhece seus limites e seus pontos fortes e é capaz de aceitá-los todos, será visto como alguém mais bem resolvido e mais bonito", avalia o psicanalista Cláudio Bastidas, autor do livro Outra Beleza, sobre psicanálise, literatura e estética. "O inverso também é verdadeiro: quem não se aceita transmite desconforto", diz ele.
Entre todas as qualidades lembradas pelos especialistas, a auto-estima e a autoconfiança costumam ser as armas mais poderosas na busca por essa beleza ampliada. Simples. Ambas têm um impacto direto na sua maneira de encarar o mundo e na forma como as pessoas percebem você. Quem resiste a quem olha no olho, fala de maneira enfática, mostra firmeza sem ser rude e exibe serenidade sem ser apagado? A questão é que não basta interpretar, é preciso ser seguro de fato. Esses sinais de autoconfiança aparecem nos pequenos detalhes, como na forma de gesticular ou no timbre da voz. Não dá para fingir - nem seria o caso. Gostar de si mesmo e confiar na própria capacidade podem ter efeitos mágicos em sua receita de beleza. Tanto assim que há quem acredite que vem daí parte do poder de quem tem características físicas privilegiadas. "Se uma pessoa se sente bonita, ela desenvolve uma autoconfiança maior e isso reforça sua atitude no trabalho", afirma Maria Irene Betiol, professora de psicologia da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas. "Em geral, uma pessoa que se acha bonita é mais segura de saída e por causa disso deixa fluir com mais facilidade sua competência." Haveria assim uma espécie de "efeito Tostines": a pessoa é segura porque é bonita ou parece mais bonita por ser segura?
Na sedução, boas doses de confiança e dedicação costumam levar mais longe do que um rostinho bonito. "O sujeito que poderia ser considerado fisicamente feio tem armas que o bonito nunca vai desenvolver", avalia o jornalista e escritor Xico Sá, autor do livro A Divina Comédia da Fama. Ele exemplifica: o segundo tipo é mais paciente e aplicado, mais caprichoso no sexo e não costuma escorregar no egocentrismo, como faz o homem bonito. "O Rodrigo Santoro vai para ganhar por nocaute. Já o cara feio tem de ganhar por pontos e precisa ter mais consistência", diz Xico, que se autodefine como um "suposto feio". Para o escritor, não há dúvida de que as mulheres mais atraentes não são necessariamente as mais belas fisicamente. "Entre uma modelo sem um pingo de safadeza e outra mulher mais gordinha e insinuante, fico com a segunda sem vacilar." O fundamental na avaliação dele é não entregar os pontos à ditadura do físico. "Não critico quem faz plástica ou põe silicone, mas é mais saudável você descobrir onde está sua beleza particular", diz Xico.
Perceber quem você é passa a ser fundamental na busca dessa beleza expandida. É preciso descobrir sua identidade. Nesse quesito, o caso do ator Raul Cortez é lembrado pelo psiquiatra Cláudio Bastidas. Embora não se aproximasse do protótipo de beleza masculina, Cortez assumiu seu tipo físico e fez papéis de galã quando era mais jovem. Além disso, a pluralidade da sociedade, com sua riqueza de visões e grupos diferentes, é um bom estímulo para que cada um procure sua turma. Cada tribo tem sua leitura do que é bonito e de que atitudes são valorizadas. Os sociólogos têm musas diferentes dos skatistas, cuja estética é bem diversa da dos surfistas. Saiba ser diferente e procure os diferentes iguais a você.
Na busca de sua autêntica beleza, você pode até concluir que vale a pena tentar se aproximar do padrão estético dominante. Isso de fato tornará você mais feliz? A maior parte dos especialistas não vê nada de errado em caprichar no visual, desde que essa aposta não se transforme em algo doentio. "A preocupação com a aparência física é saudável, é uma afirmação da vida. O que não podemos é exagerar, supervalorizar o corpo e esquecer todo o resto", afirma o filósofo Charles Feitosa. É fundamental perceber que há valores mais nobres em jogo, especialmente a sua felicidade. E, nesse ponto, Vinicius de Moraes é incontestável: é melhor ser alegre que ser triste.
Outra Beleza, Cláudio Bastidas, Escuta
Explicando a Filosofia com Arte, Charles Feitosa, Ediouro
Amei este texto publicado na Revista Vida Simples!
beijos carinhosos!
Um comentário:
Obrigada pelo lindo post! É bem o que eu quero expressar!!! Beijinhos
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