domingo, julho 20, 2008

O Movimento do Mundo.



É imprescindível que alguém esteja atento ao movimento do mundo. É imprescindível que alguém registre esse movimento na forma de uma poesia vital, com densidade suficiente para traduzir, de alguma forma, essa coisa fugidia que é a vida, essa coisa complicada que é o mundo. Não sei até que ponto a poesia traduz o mundo ou até que ponto ela forja um mundo outro. São questões tão antigas, mas é preciso repropô-las sempre. O poeta é aquele que não perde jamais a capacidade de espantar-se com a existência das coisas do mundo? Façamos uma meditação sobre a poesia. O poeta talvez seja aquele que, passado o primeiro espanto, reveste a si mesmo de uma retidão necessária ao exaustivo ofício de dissecar as coisas do mundo.



E como se disseca um mundo? Como separar o mundo em partes, como olhar para cada uma dessas partes separadamente? É necessário que alguém, com muita coragem, diga sobre o mundo aquilo que deve ser dito. E afinal, o que é que deve ser dito? Não se sabe. Cada qual deve descobrir dentro de si uma voz que lhe ensine quais as coisas a dizer sobre o mundo e como dizê-las – uma voz que lhe guie através desse caminho difícil. O mundo é como uma máquina voraz, que abriga coisas tão delicadas. A vida: que é apenas uma gelatina frágil. A vida, que é uma coisa forte, mas que também perece sobre o pontiagudo do mundo.



O poeta pode fechar os olhos para a morte, mas ela é onipresente na poesia. Porque o traço distintivo mais forte das coisas do mundo é o transitório. Estar, e logo depois não estar mais. Ser, e logo depois esfumar-se. Isso não é doloroso? Deve ser, para que se possa sentir o mundo em toda a sua beleza. Esse é o pathós do mundo – as coisas que o povoam não são duráveis. Sabe-se que o mundo é transformação. Por estar farto das transformações do mundo, o ser humano inventou o eterno? A Arte é apaixonada pelo eterno. Mas se vê a toda hora confrontada com o transitório. Sob os pilares desse conflito essencial, construiu-se Arte no Ocidente, desde os antigos. Nietzsche reivindicava uma Arte que rejeitasse a perene discordância entre eterno e transitório, forma e aparência. Uma prática artística baseada no próprio pathós da mutação. Uma Arte de celebração do transitório e de afirmação alegre e incondicional da vida da forma tal como ela se apresenta: quebradiça, dolorosa, múltipla, inconstante e sem sentido. É possível praticar uma poesia que celebre, com alegria, a contínua transformação e a efemeridade das coisas do mundo?



Mas há uma incomunicabilidade. A dificuldade de traduzir a contínua transformação do mundo através da linguagem será o maior desafio para a poesia. A máquina do mundo é hermética e não se abre a qualquer primeira tentativa. Se entre a linguagem e o mundo existe um abismo, então o poeta será aquele que, solitária e laboriosamente, fabrica uma ponte, muito frágil, muito vacilante – um canal que permita traduzir o movimento cego da máquina em linguagem humana. E não será permitido a ele utilizar-se de material alheio – de formas, conceitos, idéias, concepções, modos de julgar e perceber as coisas do mundo que não forem dele próprio. O poeta precisa fabricar o próprio material. Ainda assim, ele será aquele que trabalha sobre a constante ameaça de queda para dentro desse abismo primitivo onde a linguagem não se faz. Um abismo úmido, original, de onde ele mesmo saiu. Apesar de tudo, ele se esforça nesse trabalho ingrato de fabricar uma ponte com o próprio corpo – pois o material adequado para a construção da ponte – da poesia - é aquele que o próprio corpo do poeta fornece: seu susto, seu espanto, seu gozo, seus espasmos, sua dor intolerável de saber-se finito, sua triunfal Alegria de fazer parte, mesmo que por instantes, do infinito movimento do mundo e de poder tocar e degustar as coisas que o mundo tão generosamente lhe oferece.


Aqui, uma completa lição de poesia. A fantástica abertura da máquina do mundo ao poeta e a incompreensível e absurda recusa deste em recebê-la.

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