sexta-feira, junho 06, 2008



AMIZADE


por Liane Alves da Revista Vida Simples

Imagine escolher uma frase, entre as milhares que já foram escritas, para definir a mais celebrada relação que existe na face da Terra. Uma frasezinha apenas, um único conjunto de palavras que possa abarcar e transmitir o que é a amizade. Dos pára-choques de caminhão aos filósofos gregos, dos ditados populares a Shakespeare, selecionei uma delas, muito singela, que é capaz de dar a exata dimensão desse tipo de amor. Ela foi escrita por um autor norteamericano de ficção científica, Ray Bradbury. Disse nosso amigo Ray que a amizade é uma casa com uma luzinha na varanda. Bonito, não? Num único flash, ele consegue passar a sensação de aconchego, calor, carinho e alegria que pode estar presente na amizade. Isto é, por mais escura que a noite possa nos parecer, a luminosidade acolhedora desse sentimento vai estar sempre aguardando nossa chegada. Ao abrigo dos amigos, podemos tirar a fantasia, a máscara e a armadura e largar paus e pedras e nos mostrar vulneráveis, frágeis, cheios de defeitos. E perceber que, ainda assim, somos aceitos. Existe bem tão precioso quanto esse num mundo tão agressivo e pontudo como o de hoje?

A amizade é o relacionamento que tem mais a cara do nosso tempo. Ou talvez, mais ainda, do futuro. Livre, aberta, democrática, ela nos convida ao exercício da tolerância, da aceitação do outro exatamente como ele é. Além disso, nos faz provar um pouquinho do gosto do amor incondicional, aquele que não perde tempo em cobranças ou exigências. Ela é tão especial que, hoje, uma boa centena de pensadores, sociólogos, psicólogos e antropólogos se dedica inteiramente ao seu estudo.

Refúgio

Há uma boa razão para isso. A amizade tem uma dimensão muito maior agora do que, digamos, 50 anos atrás.

Naquela época, boa parte do tempo livre das pessoas era ocupada pela família, com seus aniversários, casamentos, festas de Natal e intermináveis almoços de domingo. Hoje, a família numerosa fragmentou-se. Pais, mães e irmãos estão em crise com seus próprios papéis. Além disso, os relacionamentos amorosos, outra fonte de grande interesse, já não duram tanto tempo como antigamente. O afeto dos amigos tornou-se, então, um refúgio. “Nascemos num mundo seguro, previsível, rígido, formal, e agora vivemos em outro, incerto, instável e, ao mesmo tempo, cheio de possibilidades de mudanças”, afirma Jorge Forbes, psicanalista e consultor de empresas de São Paulo que escolheu a amizade nos dias de hoje como um dos seus temas preferidos.

Outro motivo para a alta crescente da amizade: a vida anda muito dura. A sociedade estimula o individualismo, a competitividade, a agressividade e a intolerância com a diferença. Exatamente por isso, aumenta a cada dia a sede das pessoas por valores mais humanos, como amor, confiança, respeito, tolerância e solidariedade, qualidades presentes em abundância nas relações entre amigos. Se não temos mais a família consangüínea para nos abastecer de compreensão e carinho, se a relação entre casais é cada dia mais instável, quem senão os amigos para fazer esse papel?

E mais um fator aumenta a importância desse sentimento: “Os vínculos de amizade tornaram-se um campo de experimentação da sociedade, um laboratório onde ela gesta os relacionamentos do futuro”, diz Jorge Forbes. Isto é, a abertura, a aceitação e a flexibilidade que caracterizam as relações entre amigos serão cada vez mais comuns no trabalho, na família e na sociedade, afirma ele. Pais mais amigos, maridos e esposas mais amigos, chefes mais amigos. Um belo futuro. Tomara que ele tenha razão.

Snoopy e Garfield

O próprio conceito de amizade já mudou muito. Antes, amigo era o que pensava igual à gente. “Éramos amigos por semelhança, comunhão de interesses”, diz Forbes. Hoje, é possível dar um passo à frente. “Amigo também pode ser uma pessoa muito diferente de nós. Posso aprender a respeitar e admirar a singularidade do outro, sem que ele precise ser igual a mim.” Não só. Também posso aceitar minha singularidade, sem querer agradar os outros. Para ele, pessoas como Chico Buarque ou Caetano Veloso, por exemplo, sustentam sua própria singularidade, sem dar o braço a torcer para ninguém. Em outras palavras, são do jeito que são, como o Snoopy e o Garfield. “Não posso imaginá-los mudando de máscara para agradar quem quer que seja”, diz Forbes.

Parece mesmo que as pessoas estejam começando a aprender a se aceitar melhor umas às outras, concedendo um pouco mais de espaço para suas manias, defeitos e incoerências. É só dar uma olhadinha num dos seriados de maior longevidade da TV americana, Friends. Os personagens são todos uns alucinados, completamente diferentes uns dos outros. O que nos une é a força da amizade. Ou seja, a capacidade de sair um pouco de si mesmo para olhar o diferente com mais carinho e aceitação.

E isso não acontece só no plano pessoal, não. Atento e pragmático, o ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton reconheceu essa nova realidade mais flexível no cenário internacional.“ Se você acredita que um mundo de interdependência e fronteiras abertas é inevitável – e não pode matar ou prender todos os seus adversários – vai precisar adotar a política de ter muitos amigos e poucos inimigos.” Isso é que é ter visão de futuro. O camarada George Bush deveria escutar isso.

A cigarra e a formiga

Mas, verdade seja dita, ainda caminhamos lentamente no terreno da aceitação. Em seu livro Os Significados da Amizade, a antropóloga carioca Cláudia Barcellos Rezende analisou a diferença entre londrinos e cariocas no campo da amizade. Sabe o que ela descobriu? Que tanto londrinos como cariocas têm um discurso superhiperpoliticamente correto com relação aos amigos (“não importa a classe social, sexo ou raça, quando se trata de amizade”, dizem os brasileiros, ou “não importa a classe social”, afirmam os londrinos), mas, na prática, todos são amigos de pessoas fisicamente, culturalmente e socialmente muito semelhantes. Em resumo, a abertura à diferença está mais no discurso que na vida real. Isto é, tudo muito bom, tudo muito bem, mas amigo só vai realmente me entender se for parecido comigo.

Dou meu testemunho. Durante muito tempo fui amiga de Mitsuko (bom, ela não se chama realmente assim...). Tinha muito orgulho de ter uma amiga tão diferente, mas tão diferente mesmo, de mim. Craque em aikidô (enquanto eu ainda engatinhava no tai chi), trabalhadora incansável (enquanto eu adoro sentar num banco de praça para tomar sorvete) e taxativa nas opiniões (prefiro variar, muitas vezes só para irritar o interlocutor), Mitsuko era a própria formiguinha enquanto eu era apenas uma esforçadíssima aprendiz de cigarra. Durante cinco anos, nos divertimos muito convivendo bastante bem com nossas diferenças.

Até que, um dia, Mitsuko foi terminar seu curso de psicologia. E aí vi quanto ressentimento e raiva ela escondia debaixo do pano com relação à minha cigarrice. Minhas ações passaram a receber todas as interpretações existentes na psicologia. Passei a viver debaixo de um microscópio. E ela a fazer críticas sem dó nem piedade. Como não pretendia fazer cinco anos de faculdade para pagar na mesma moeda, um dia cansei. Venceu o prazo de validade daquela amizade. Mitsuko não conseguiu “sustentar minha singularidade”, nem eu a dela. Essa ainda é a regra geral entre amigos, sou obrigada a confessar.Mas valeu o treino.

Fiéis escudeiros

Mas, se existe alguém capaz de vencer as diferenças e que pode nos servir de exemplo, ele é exatamente Barney Rubble. Quem, além dele, seria capaz de conservar e cuidar tanto de uma amizade com alguém tão diferente de si como Fred Flintstone? Só nosso querido Barney (e talvez por isso ele seja apenas um personagem de desenho animado). Mesmo assim, tem um pulo do gato aí. Qual é o segredo de Barney para manter essa amizade impermeável aos desgastes naturais do tempo? “Em primeiro lugar, ele não perde a calma. Nada o abala, nem os berros de Fred nem suas sacanagens constantes. Ele é totalmente zen”, diz a psicóloga mineira Fátima Aquino, especialista em terapia familiar. Em outras palavras, numa amizade é sempre um dos lados que segura mais as pontas (se for você, é assim mesmo, sinto muito...). “Em segundo lugar, Barney gosta realmente de Fred. E o gostar faz ultrapassar nossos limites”, diz ela. Além disso, o louro baixinho é fiel, atencioso e dedicado por natureza, qualidades que o ajudam na manutenção de um relacionamento. Ele tem vocação para ser amigo.

Do seu lado, Fred também faz sua parte: quando erra,arrepende-se sinceramente, muitas vezes às lágrimas. “Barney e Fred são opostos complementares, faces da mesma moeda. A maioria dos desenhos ou seriados policiais de TV é construída sobre esses pares de amigos (ou inimigos) opostos: Tom e Jerry, Manda-Chuva e Batatinha, Zé Colméia e Catatau. Na verdade, esses aspectos duais e complementares estão em nosso coração”, diz Fátima.

Isso mesmo. Há um Dom Quixote e um Sancho Pança dentro de nós – entre tantos outros.Dom Quixote é nosso lado criativo, inventivo, sonhador, que arrisca a vida pelo amor de sua Dulcinéia. Sancho é nosso lado preguiçoso, simplório e pragmático – quer saber onde é a estalagem mais próxima para tomar um bom vinho e esquecer essa conversa fiada de derrotar gigantes e salvar donzelas. E um precisa do outro – Dom Quixote não daria um passo sem o lado prático de Sancho. E Sancho seria incapaz de sair do seu vilarejo se não lhe acendessem o coração as histórias do Cavaleiro Andante. Agora, quando o lado escudeiro ou cavaleiro não estiver disponível, sorte sua – ou mérito – se há um substituto de carne e osso do lado. Esse é o amigão.

Nos livros O Herói de Mil Faces (Pensamento) e O Poder do Mito (Palas Athena), o mitólogo e professor Joseph Campbell afirma que a maioria dos mitos descreve a maneira pela qual os amigos, ou auxiliares externos, ajudam o protagonista a cumprir seu destino. São seres encantados, animais que falam, anjos, gênios, magos e, principalmente, escudeiros, os fiéis companheiros de travessia. Sem eles, nada feito. Seria ótimo se a gente pudesse olhar para nossos amigos assim, como gente que está ali para nos ajudar a viver a vida.

Foi o que aconteceu com a terapeuta paulista Valéria Pasta. Após uma dolorosa separação, ela se viu num atoleiro sem fim.“Parecia que estava em um terreno de areia movediça. Não conseguia sair e me via afundando cada vez mais”, diz ela. Foi no auge do desespero que uma amiga mais decidida e maternal disse: “Agora chega!” “Se pudesse descrever visualmente esse momento, é como se ela tivesse jogado um anzol, uma corda, para me ajudar a sair dali”, conta. A amiga levou Valéria para a casa dela, cuidou da moça, a alimentou bem e deixou que ela tomasse bastante sol no jardim. Um dia, a boa samaritana sentiu que sua hóspede já estava suficientemente forte para enfrentar a vida de novo e a liberou. Valéria tinha ultrapassado a crise. E hoje ela realiza a tarefa de sua vida: dar assistência espiritual e psicológica para pacientes terminais.“ Só pode se dedicar a isso quem conheceu as dores do fundo da alma”, diz ela. E quem sobreviveu a isso, com ajuda dos amigos.

Tipos inesquecíveis

Há diferentes graus de intimidade e compromisso na amizade. Há o amigo de grandes confidências e o amigo para ir ao cinema e tomar chope. Amigos de infância ocasionalmente também voltam para nossas vidas. E sempre vamos nos lembrar com carinho daqueles amigos que nos ensinaram uma grande lição, que deram um apoio num momento muito difícil ou ainda com quem dividimos aventuras significativas. Uma grande sabedoria é distinguir quem é quem: não trocar confidências com quem se tem uma relação rasa, não exigir que os amigos de infância fiquem para sempre, não esperar que conhecidos e camaradas sejam capazes de arriscar o pescoço por nós. Cada um é um, e o maravilhoso da amizade é exatamente essa sua relatividade elástica. Reconhecendo os limites e capacidades (e, por que não, as funções) de cada amigo, podemos prolongar e cultivar amizades por muitos anos.

É prudente identificar essas diferenças. Na antiga Seleções do Reader’s Digest havia uma seção chamada “Meu Tipo Inesquecível”. Quase sempre o texto continha um depoimento de uma pessoa sobre um amigo que tinha se tornado decisivo num momento crucial da sua vida. As ilustrações variavam de um menino sardento escorregando num monte de feno a um professor maluco andando de pé numa bicicleta. Com isso, sempre imaginei que o meu tipo inesquecível tinha de ser uma pessoa importante que tinha conhecido na infância ou adolescência – até conhecer, há poucos meses, minha vizinha Nilza Campos. Cabelos brancos, criada nas fazendas de Goiás, é a pessoa mais generosa que conheci nos últimos tempos. Não raro, quando me vê afundada numa reportagem, manda uma tigelinha de sopa, “para acalmar o estômago”. É quem empresta o ferro de passar quando o meu quebra, que me indica a faxineira quando a minha vai embora. Com ela posso conversar de todo e qualquer assunto, mesmo com seus 70 anos. É uma das minhas melhores amigas e com certeza um dos “meus tipos inesquecíveis”.

Tem também o amigo de infância. Vez por outra, ele aparece. No geral, esse antigo amiguinho pode ser de uma intimidade constrangedora, principalmente quando faz questão de contar aos seus amigos atuais algo que quase o matou de vergonha há muuuuito tempo atrás, como a idade real em que você deixou de chupar dedo.

A dor e a delícia de encontrar o amigo de infância é que ele quer se relacionar com alguém que, de certa maneira, já morreu: aquele você do passado. É bom porque, pelos olhos dele, dá para medir o tamanho da mudança que sofremos ao longo da vida e atualizar a imagem que fazemos de nós mesmos. Se você gosta de reencontrá-lo, não deixa também de ser um alívio quando ele vai embora (normal, não precisa sentir culpa). Já os amigos que você conheceu na infância e que ficaram ao seu lado podem ser bem mais interessantes. Com eles, você pode testar sua capacidade de tolerância à diferença. Porque, quando crescem, os amigos de infância geralmente se tornam muito diferentes de você, com outras profissões, gostos e maneira de pensar. São, portanto, um ótimo teste.

Amigo só para tomar chope também vale. Mas será que ele é um amigo de verdade? Pergunte a um carioca como Luiz Mello. Ele tem dezenas de amigos assim, para tomar chope, escalar montanha,fazer trekking, azarar, viajar. “São amigos só para isso, ué”, diz ele. Então que seja. Por que não?

Mas difícil de encontrar mesmo é o amigo companheiro. A palavra “companheiro” significa exatamente “aquele que divide o pão”. Esse amigo dá um braço por você,enfrenta o que der e vier por sua causa. E está sempre prestando atenção no que você pode precisar. Uma boa história que fala desse tipo de amizade pode ser vista num grande filme, Perdidos na Noite. Nas ruas de Nova York, surge a amizade comovente entre um rapaz vindo do interior (John Voight fazendo papel de John Voight) e um vagabundo (Dustin Hoffman, num dos melhores desempenhos de sua carreira). Ratto, o vagabundo, convence o amigo a fazer michê para sobreviver na cidade, fazendo o gênero cowboy para mulheres solitárias. Ele segue o conselho. Mas, com tristeza, o rapaz percebe que, aos poucos, uma doença derrota seu grande amigo. Como último gesto de companheirismo, paga uma passagem para Ratto ir à Flórida, o maior sonho do vagabundo. Se você realmente quiser se inspirar nesse tipo de amizade, assista ao filme de novo.

Bom, o assunto é inesgotável. Para terminar, queria lembrar alguém que fez um tratado sobre amizade (Da Amizade, Martins Fontes) há quase 2 mil anos, o senador romano Marco Túlio Cícero. Diz ele que se os deuses nos dessem o paraíso, com suas flores e fontes, paz e abundância, beleza e harmonia, em pouquíssimo tempo a gente morreria de tédio, se não tivéssemos amigos para dividir a experiência. Enfim, sem o sal da amizade, a vida fica sem tempero, sem graça. Não é motivo suficiente para você levantar agora do sofá e ir ver um amigo?

You’ve got a friend

Em muitas tradições religiosas, Deus é considerado o amigo supremo, aquele conhece profundamente nosso coração e nos ama com nossos defeitos e limitações. Entre os muçulmanos, “O Amigo” é um dos 99 nomes de Deus. “Ele é tolerante e protetor com aquele que O ama”, diz o xeque sufi Mohammed Ragip. Afirmam os budistas tibetanos que o Buda que abençoará este milênio chama-se Maytreia, nome que significa “Amigo”. Para o guru indiano Osho, é a amizade, e não mais o temor, que irá caracterizar nossas relações com Deus. No cristianismo, a amizade também é fundamental. A única vez que Jesus Cristo chorou, segundo os Evangelhos, foi com a notícia da morte de um querido amigo, Lázaro. Jesus dava realmente um valor inestimável à amizade. Disse para seus discípulos, pouco antes de fazer sua última refeição com eles: “Já não os chamo mais de servos, mas de amigos...”. E lavou seus pés.

PARA SABER MAIS

VÍDEO
Amizade em Tempos de Risco, Seminário com Jorge Forbes gravado para o programa Café Filosófico, apresentado pela rede de emissoras educativas

2 comentários:

Papu Morgado disse...

“Amigo também pode ser uma pessoa muito diferente de nós. Posso aprender a respeitar e admirar a singularidade do outro, sem que ele precise ser igual a mim.”

Amei este texto todo! Tirou as palavras da minha boca! Beijinhos

Ana Luisa disse...

Oie!!
Sabe aquela história de deixar um pouco de si e levar um pouco de nós? Então...amigos são exatamente assim.

Saudades de suas visitas.

Bjoks.