sábado, abril 19, 2008



Resíduo - Carlos Drummond de Andrade

De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz captada no chapéu.
Nos olhos do rufião de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó de que teu branco sapato se cobriu.
Ficam poucas roupas, poucos véus rotos,
pouco, pouco, muito pouco.

Mas tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada, de duas folhas de grama,
do maço - vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo no queixo de tua filha.
de teu áspero silêncio
um pouco ficou um pouco
nos muros zangados, nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo nos pires de porcelana, dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa, retrato.
Se de tudo fica um pouco, mas por que não ficaria um pouco de mim?
no trem que leva ao norte, no barco, nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres, em pouco de mim algures?
no consoante?
no poço

Um pouco fica oscilando na embocadura dos rios e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool, salta esta perna de rã,
este vidro de relógio partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne, este segredo infantil...

De tudo fica um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
do vento nas orelhas minhas, simplório arroto, gemido
de víscera inconformada, e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula de revólver...de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção e abafa o insuportável mau cheiro da memória.

Mas tudo, terrível, fica um pouco.
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço do cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Amo esta poesia do Drumond. O verso que está sublinhado é o meu predileto.

beijos e até!

6 comentários:

. fina flor . disse...

adorei tudo por aqui!

as pin ups que aaaamo, o lolita que adooooro, a Marilyn que aaaaamo, suas colocações a cerca dos extremos que a mídia apresenta ;-)

beijocas e bom feriado,

MM.

ps: cheguei através da Mariah! se quiser conhecer o canteiro, será bem vinda =]

Flávia disse...

Oi, Julia!

Cheguei aqui através da Mônica aí em cima... Lindo o seu blog! Feminino, delicado e bem escrito. Parabéns, viu? Vida longa ao seu Barato Secreto aqui nesse louco mundo blogger.

Beijo, beijo, beijo!

Mariah disse...

"Nos olhos do rufião de ternura ficou um pouco
(muito pouco)"
"Ficou um pouco de tudo nos pires de porcelana, dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa, retrato."

E, que se vire, e faça esse "pouco" que restou durar pra vida toda.
E, que se vire, e faça desse "pouco" suficiente para acalantar a alma e acalmar a saudade.
E, que se vire, e faça mágica, para que esse "pouco" não cozinhe em "muita tristeza".

Com esses "poucos" que vamos colecionando pela vida...que asfaltamos nossa estrada.

Tudo aqui é lindo de se "ler"
Maraih

Mariah disse...

lá no Mariah tem uma mensagem para você e mais 7...
Mariah

Mariah disse...

lá no Mariah tem uma mensagem para você e mais 7...
Mariah

. fina flor . disse...

muito bonito o poema, só agora que li.

beijos, querida

MM.

ps: tive que tomar uma medida mais drástica, digamos assim, em relação aos meus vizinhos.... passe lá no canteiro e veja.