O ano em que fui carioca
Por Adriano Silva
Quem nunca sonhou em morar no Rio? Pois eu realizei esse sonho! E, durante o tempo em que vivi lá, aprendi a amar a cidade. Mas com o distanciamento do olhar de estrangeiro. Isso me permitiu perceber que há mitos sobre o Rio que se confirmam. E outros que não têm nada a ver
Sou gaúcho: nasci em Porto Alegre. Também sou paulistano da gema: moro há mais de dez anos em São Paulo. E Kyoto, no Japão, é igualmente minha hometown: vivi três anos lá. Ano passado, realizei o sonho de quase todo brasileiro: morei no Rio. E no Leblon, o bairro mais charmoso do Brasil. Pegava praia com meus filhos pequenos diante do olhar majestoso do morro Dois Irmãos -que já mereceu uma linda música do Chico Buarque. E fazia tudo a pé, sem pegar carro. Mais do que um lugar, o Rio é uma entidade mítica que mora na alma da gente. Trata-se de uma cidade aspiracional. E cheia de mitos. Mas será que são verdade? Eis o que tenho a declarar.
1. Cariocas têm o sotaque mais gostoso do Brasil
Ou, pelo menos, o maish manêro. Os cariocas, como os franceses, saboreiam a língua que falam, salivam sobre o que dizem, mastigam as palavras. Têm imenso prazer em conversar. Ou melhor: em falar. Ou, melhor ainda: em se ouvir. E têm razão nisso. Todo carioca é um orador nato. Do taxista ao vendedor de mate na praia. Todos são excelentes prosadores. Falam com ritmo, charme, suingue. Têm humor, ênfase, emprestam autoridade a qualquer coisa que digam. São grandes sedutores: têm o talento de levar na lábia, de ponderar do jeito certo, de convencer.
O sotaque nordestino também é delicioso. O sotaque mineiro também é um bijuzim. Só que os nordestinos, como os mineiros, ao contrário dos cariocas, parecem não ter consciência disso. Não se curtem desse jeito quase onanístico. A auto-estima do carioca e a celebração que ele faz de si mesmo são prodígios a serem comemorados.
2. Cariocas falam alto
Às vezes, nas ruas e nos bares do Rio, você acha que duas pessoas estão brigando, a um passo da agressão física, e elas estão, na verdade, concordando. Em várias rodas, quem quiser ser ouvido precisa colocar a voz no volume máximo. É preciso ganhar no grito o direito de dizer alguma coisa. Minha tese é que isso é culpa da praia. Na areia, o som do mar e da balbúrdia ao redor exige que o sujeito imposte a voz como se estivesse num auditório -mesmo estando a um metro e meio do interlocutor. Então, no Rio, guarde a polidez e a sutileza no bolso e comece as frases dando um dó-de-peito.
3. Cariocas têm corpos esculturais
O Rio, segundo uma revista masculina inglesa, é o lugar com a maior concentração de corpos perfeitos por metro quadrado no mundo. É verdade: há abdominais desenhados, pernas bem torneadas e peitorais definidos a granel. Dá certa vergonha ao visitante tirar a camisa no calçadão de Ipanema. Claro que também existem cariocas barrigudos, pelancudos. E o bacana é que eles não estão nem aí: perambulam pelados com grande tranqüilidade, exercendo o direito à nudez de suas polpas.
O corpo significa toda uma outra coisa no Rio. A exposição coletiva de intimidades, o encontro social na praia, todo mundo meio pelado, é um acordo tácito e histórico a respeito do que virilhas, pêlos e sovacos significam. No Rio, você é íntimo do desconhecido -afinal, ele está vendo o seu umbigo e você, o dele. Numa cidade como Curitiba ou Belo Horizonte, o acesso visual ao umbigo de alguém é um processo lento e rigoroso.
Entre todos os espécimes à exposição na orla e na Lagoa, há dois tipos de corpos que só existem no Rio. Primeiro, as mulheres portentosas. Várias curvas femininas cariocas desafiam a física. Minha teoria: a existência dessas bundas e coxas requer muitas horas de samba em cima de um salto plataforma. Segundo fenômeno: os octogenários com saúde de trintões que jogam vôlei horas a fio na praia debaixo de um sol abrasador. Há uma terceira-idade hiperatlética no Rio que só se explica pelo fato de que, aqui, estar saudável é uma obrigação. Fazer atividade física é uma convenção social. Sedentários são gente solitária no Rio. São relegados à turma dos sem-graça. De fato, a cidade convida você, a todo momento, a sair de casa e, se me permitem, fazer amor com ela.
O Rio é absolutamente sensual. Se fosse mulher, seria uma fêmea de relevos fascinantes e fendas irresistíveis.Nenhuma outra cidade convive tão bem com uma sunga como o Rio. Em nenhum outro lugar do mundo se veste um biquíni com tamanha naturalidade. Pés descalços tiram a honra de qualquer um em qualquer cidade civilizada do planeta -menos no Rio. O carioca vai ao supermercado em traje de banho e vai ao restaurante com o cabelo cheio de areia e sal -tudo na maior naturalidade. Essa descontração e essa cultura da pouca roupa resultam numa moda praia imbatível. Que só não virou mania global ainda pela auto-suficiência dos cariocas e pelo relativo desinteresse deles no que fica para lá do túnel Rebouças. Afinal, do Leme ao Pontal, não há nada igual -no mundo. Um fato. Por que sair daqui? O resto do guarda-roupa do carioca, no entanto, ganha nota baixa. De modo geral, a turma se veste mal. Especialmente quando não é verão. A impressão que dá é de que aquela tal deselegância discreta se mudou para cá.
4. O Rio tem cultura própria
E é uma das poucas cidades do mundo que pode dizer isso de si mesma. O Rio tem a cultura solar da água de coco na praia, a noturna do chope e da boemia no boteco, do café-da-manhã na calçada, da comida natural nas lojas de suco de fruta -o verdadeiro fast-food carioca. Tem a estrondosa, multicolorida e influente cultura das favelas. Tem a nostalgia vivíssima daquele Rio mágico e romântico de outros tempos. O Rio tem dialeto, produção musical, jeito de dançar, de vestir e de falar próprios. Os cariocas têm orgulho disso -e com razão. No entanto, ainda se importam demais com São Paulo, como se guardassem um certo ressentimento da paulicéia.
5. Cariocas são os mais brasileiros entre nós
No Rio, todo mundo se conhece. Não há anonimato na Zona Sul da cidade. E todo mundo é filho de alguém. Para os cariocas, as conexões familiares são fundamentais. E a patota é tudo. Não é fácil entrar na turma, obter um visto de pertencimento. Você não é hostilizado abertamente por ser estrangeiro. É recebido com simpatia -o carioca é um simpático obsessivo. Você até consegue ser admitido no grupo, mas só até certo ponto. Depois dessa risca leva tempo, exige um baita rito de transformação. E às vezes simplesmente não rola. Eles decidem que você vai ficar de fora da panela e ponto.
Uma amiga me diz que a sociedade carioca descende da corte portuguesa, de um passado de capital do Império. Donde o carioca ter uma alma de barnabé e uma relação meio incestuosa com o poder. Outro amigo me conta que a famosa Zona Sul é uma dúzia de famílias que convivem juntas há mais de um século. Donde os relacionamentos e os sobrenomes valerem tanto no Rio. São Paulo, segundo um terceiro amigo, seria a antítese disso, ao descender de uma cultura de imigrantes que chegaram ao país sem pedigree e, muitas vezes, sem um tostão. Por isso, ao contrário do Rio, São Paulo valorizaria muito mais a meritocracia do que a tradição, muito mais o talento do que as conexões.
6 . O Rio é caro
Tirando táxi, o resto --restaurante, roupa, colégio, estacionamento-- não deve nada ao alto custo de vida paulistano. Não há pão francês no Rio. Nem aquela cultura de padocas de São Paulo. Em compensação, a maioria dos cinemas tem lugar marcado! A cultura teatral é intensa: em que outra capital você vê peças sendo anunciadas em anúncios no vidro traseiro dos ônibus? Mandioquinha se chama batata-baroa. Feijão é o preto, como no rincão onde me criei. No Rio também não tem essa de, num bufê, servir primeiro as saladas e depois os pratos quentes. É tudo junto na mesma pratada. E as pessoas, inacreditavelmente, deixam suas bandejas sujas para trás nas mesas das praças de alimentação dos shoppings. E restos de comida e bebida nas poltronas do cinema. Jogar o lixo no lixo não parece ser o forte da cidade. A começar pela areia -e, tristemente, pelas águas- da praia. Ah, sim: loira é loura e bolacha é biscoito.
7. O Maracanã é o estádio mais gostoso do mundo
E o Jardim Botânico, onde Tom Jobim ia assobiar com os passarinhos, é um lugar mágico. O Rio tem dias perfeitos. Mas também tem dias frios -verdade! A luminosidade é intensa: só no Rio existe uma cortina chamada 'blecaute', que é para barrar o sol quando ele nasce rachando e vem devassar o quarto da gente ainda de madrugada. Carioca adora ler jornal. E pára muito em fila dupla, em cima da faixa, em qualquer lugar. Para não falar no hábito inacreditável de estacionar em cima da calçada!
8. Cruzar com celebridades é uma rotina no Rio
O Rio que fica perto do mar tem um ar e uma cordialidade de cidade do interior. Ali, as pessoas parecem desconfiar menos umas das outras e se sentem seguras para abrir informações de sua vida pessoal na fila do banco ou do supermercado. Ao mesmo tempo, o Rio é um lugar cosmopolita, onde você cruza com gente de todo lugar do planeta. E onde você cruza toda hora com celebridades à paisana, tão à vontade que você as trata como se fossem figuras corriqueiras, como se fossem seus vizinhos -o que elas de fato são. Eu, por exemplo, correndo o risco de ser corroído pela sua inveja, confesso que participava de uma pelada com Rodrigo Santoro e malhava ao lado do Gianecchini na academia.
9. O Rio tem dois milagres
Um, o samba no pé. Uma impossibilidade para mim e para outros bilhões de seres humanos. O segundo, o futevôlei. Qualquer menina-moça tem uma habilidade ridícula com a bola. Os melhores boleiros do resto do Brasil, a começar por mim mesmo -pergunte ao Santoro!- não resistem a um minuto de futevô-lei. É preciso ser carioca para dar passe de peito...
Enfim, Rio: muito obrigado. A gente ainda se vê.
(da Revista Marie Claire)
Foto: Kiko Ferrite
3 comentários:
Só falta diminuir a violência
: /
ps: Sou mineiro
hehehe
beijos
Oie!!
Ahh menina...sou carioca e tenho que concordar com tudo isso, até com o mau gosto pra se vestir no frio..rs.
Mas é um lugar maravilhoso!!!
Beijinhos pra vc.
Ahhh! Este Rio de Janeiro!
Parabéns pelo blog!
bjs
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